Sobre o ataque da Microsoft à soberania nacional: Wikileaks, Microsoft, ODF e OpenXML
Há alguns dias fomos todos surpreendidos com um documento encontrado no CableGate,
trocado entre a embaixada norte americana no Brasil e o Governo Norte
Americano em 2007. De acordo com este documento, a Microsoft fazia
gravíssimas acusações contra o governo brasileiro, e apesar de ter se
feito de ‘tolinha’ pelo relato da reunião, pedia indiretamente uma
intervenção do Governo Norte Americano para frear o avanço do ODF no
Brasil, conseguir o apoio brasileiro para a aprovação do OpenXML na ISO,
frear a parceria entre o comitê técnico brasileiro e demais comitês
internacionais que discutiam o padrão, reduzir a influência do Brasil no
debate internacional sobre o OpenXML, além de acusar o Ministério das
Relações Exteriores e a Casa Civil de estarem executando uma campanha
anti-americana. Pior do que isso, insinuam ainda que o ODF é um padrão
anti-americano!
Eu
estava envolvido até o pescoço com tudo isso naquela época e tenho aqui
todos os detalhes de bastidores que causaram esta reunião entre a
Microsoft e o Embaixador Americano e posso afirmar categoricamente: Foi
SIM um pedido velado de intervenção.
Como
esclarecimento inicial, o XML citado de forma incompleta no documento é o
OpenXML (o Open deve ter sido suprimido por quem relatou a reunião).
Para
contextualizar o documento, é importante lembrar que começamos a
trabalhar na avaliação do OpenXML no Brazil no início de 2007, e que
votamos “NÃO” à aprovação do padrão em Setembro. O resultado desta votação foi
a rejeição do padrão com mais de 3 mil defeitos técnicos apontados.
Mesmo assim, de forma surpreendente, o SC34 resolveu agendar uma reunião
de 5 dias para Março de 2008 em Genebra na Suiça para ‘discutirmos os
mais de 3 mil problemas técnicos’. Esta reunião se chamou Ballot
Resolution Meeting (BRM) e existe farta documentação em meu blog sobre
ela e o seu resultado final, de mudança de voto surpreendente e
aprovação do padrão.
Gostaria
de deixar claro aqui que não acredito que esta reunião entre Microsoft e
o representante maior do Governo Norte Americano no Brasil tenha sido
uma iniciativa individual do Sr. Michel Levy, mas que tenha sido uma
iniciativa da corporação. Apesar de funcionário da Microsoft o Sr.
Michel Levy é brasileiro, e prefiro não acreditar que ele tenha, por
iniciativa própria, decidido se esforçar para colocar o Governo Norte
Americano contra o Governo Brasileiro, desrespeitando assim nossa
soberania nacional e nosso mérito técnico.
A
primeira pergunta que deixo aqui é em quantos outros países que votaram
NÃO ao OpenXML o mesmo aconteceu, e quais destes países “acataram”um
eventual puxão de orelha por parte do governo norte americano.
Sim, o
puxão de orelha pode mesmo ter ocorrido, pois se notarem a linha geral
do discurso usado aqui no Brasil, a decisão técnica nacional é
apresentada como sendo algo contra os Direitos de Propriedade
Intelectual (IPR), e uma das coisas que causam retaliação nos acordos de
livre comércio com os Estados Unidos são as violações à Propriedade
Intelectual. Estou cansado de colecionar boatos aqui dos tempos de
OpenXML, onde possíveis sanções motivadas por estas violações foram
trazidas à mesa para a negociação dos votos de governo em alguns países
(se seu país mudou de voto depois de Setembro de 2007, pode investigar
que vai encontrar um papel ‘chave’ para o governo nesta mudança de
voto). Quem sabe um dia o Wikileaks nos ajuda a investigar de forma
aprofundada isso também !
Ainda
sobre a motivação da reunião, acho cômico o fato de que no último
parágrafo do documento esta escrito que a Microsoft não estava pedindo
ajuda ao Governo Norte Americano, e duvido que no meio diplomático
veríamos ali algo como “a Microsoft veio pedir ajuda pelo amor de Deus,
pois estes malditos nativos Sul Americanos estão estragando tudo !”… Se
não foi para pedir ajuda, por que motivo fizeram a reunião ? Seria o
Embaixador Americano um psicólogo especializado em frustrações
corporativas ? Será que ele é blogueiro secreto de algum site
internacional de fofoca ?
Se ele deu ‘conselhos’ à Microsoft no Brasil, será que ele pode também me dar os números da Mega Sena se eu for até lá ?
Voltando
ao documento, fico imensamente irritado ao ver a Microsoft afirmar que o
Governo Brasileiro estava pressionando a ABNT para adotar o ODF. A
Microsoft era membro do comitê da ABNT na época, e tenho aqui uma ata de
reunião a empresa concorda com a abertura do processo para a adoção do
padrão ODF no Brasil. Fui o responsável por este processo dentro da ABNT
e contamos com colaboração de diversos órgãos de governo e empresas
privadas, seguindo todas as regras internas da ABNT, sem pressão alguma e
o pior de tudo: todo o processo foi feito com acompanhamento da
Microsoft, que era membro do comitê e optou por não nos ajudar com o
trabalho de tradução do padrão para o português do Brasil.
A
Microsoft sabia que o Brasil mantém uma tradição dentro da ABNT de que
não são adotadas no Brasil as normas internacionais que contaram com o
voto de rejeição do Brasil na ISO. Em outras palavras, se a tradição não
for quebrada, o OpenXML jamais será adotado no Brasil ! (e isso no
final de 2007 era uma catástrofe para a empresa, que estava jogando
pesado tudo o que podia para conseguir o carimbo da ISO no OpenXML).
Para
piorar a situação, a troca de informações entre membros dos comités
técnicos que avaliavam o OpenXML era constante, e ao ver que o Brasil
tinha dado um voto NÃO muito bem embasado tecnicamente, foi natural
começarmos a receber por aqui pedidos de colaboração de diversos membros
de outros comitês. Eu mesmo perdi a conta do número de pessoas e
comitês com quem me correspondi durante aqueles meses. Claro que
novamente isso incomodava demais a empresa, pois passamos a distribuir
por aí pontos de argumentação para os quais eles nunca teriam uma
resposta aceitável, e isso estava de fato complicando bastante a vida
deles para manipular o jogo no mundo todo.
Não vou
comentar aqui as acusações feitas ao Ministério das Relações
Exteriores, mas digo apenas que se o ministério se manifestou
internacionalmente sobre os fatos da época, esta foi uma decisão
soberana e devia ser aceita por todos (e aceitar não significa concordar
ou aprovar). Trabalhar contra um posicionamento destes é trabalhar
contra a soberania nacional, e isso é inadmissível !
Acho
interessante ver como o mundo dá voltas, e ver que as pessoas que a
Microsoft acusa de serem anti americanas, são atualmente o Ministro da
Defesa (Celso Amorim) e a nossa Presidenta da República (Dilma Russef),
que é acusada ainda de ser contra os direitos de propriedade
intelectual. Espero que a assessoria de ambos leiam o documento, para
que fique clara a imagem que a Microsoft tem dos dois !
Para
finalizar, tentam ainda insinuar que o ODF é um padrão anti americano.
Confesso que gostaria muito de saber o que a IBM, Oracle, Google e Red
Hat (entre outras empresas americanas) pensam sobre o padrão, uma vez
que trabalham há alguns anos em seu desenvolvimento e adoção. Na verdade
eu prefiro que estas empresas expliquem diretamente ao Governo Norte
Americano se o ODF é ou não anti-americano, e espero ainda que elas
peçam esclarecimentos ao governo do seu país sobre atividades similares
da Microsoft em outros países durante os anos de 2007 e 2008.
Para
quem não acompanhou a história toda, o ODF foi adotado no Brasil, o
OpenXML rejeitado por aqui e só não tivemos um papel maior no cenário
internacional pois fomos calados no último dia do BRM, justo quando
iriamos apresentar uma proposta que mudaria o final desta história. Já
contei esta história aqui.
Obrigado
ao WikiLeaks, por nos ajudar a começar a tirar os esqueletos do
armário. Para quem quiser entender como a Microsoft trata e negocia com
países que possuem políticas pró Software Livre, vale a pena ler este outro cable aqui. Divirtam-se !
* fonte: blog Jomar Silva
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